terça-feira, 22 de agosto de 2017

O vazio preenchido do deserto - o último

Não vês que somos viajantes?
E tu me perguntas:
Que é viajar?
Eu respondo com uma palavra: é avançar!
Experimentais isto em ti
Que nunca te satisfaças com aquilo que és
Para que sejas um dia aquilo que ainda não és.
Avança sempre! Não fiques parado no caminho.
Santo Agostinho.

Depois do banho, voltamos à rua Caracoles no início da noite para tentarmos agendar os passeios que nossos colegas haviam sugerido - Flamingos! - e foi uma correria só, porque também gostaríamos de fazer as Termas Puritama, um oásis de cachoeiras (quedas d'água, na verdade) e oito piscinas que têm a temperatura da água entre 28oC e 35oC; e as agências estavam fechando: nossa dúvida era se fazíamos os Flamingos de manhã e as Termas à tarde, o que não era recomendado, porque apesar da água ser quente, o sol só bate de manhã; ou seja, sair das piscinas seria no mínimo corajoso.

Como não queríamos abrir mão dos Flamingos, decidimos que não havia muito o que pensar e logo fechamos os tours, jantamos por ali num lugar delicioso, que ficaria por horas, mas o transfer nos buscaria entre 6:30 - 6:45 e acordar naquele frio matinal seria um suplício: ou seja, nada de segunda garrafa de vinho, muito menos ouvir a segunda banda. 

A chegada até o Parque Nacional dos Flamingos foi tranquila, demorou uma horinha, se não me engano, mas descer da van foi difícil: fazia grau negativo e ventava, ventava, ventava. O guia preparou café da manhã para o nosso grupo, com um pão delicioso, mas mal conseguia ficar do lado de fora: em poucos minutos voltei para a van e desejei um cobertor, quando olhei pela janela e vi a Amanda lá longe, tirando fotos da Lagoa de Chaxa.

Confesso que demorei um tempo até criar coragem para sair e encarar o frio para desfrutar de todo aquele oásis inacreditável, ainda sem flamingos, que são as lagoas  no meio do deserto de sal. Andamos por horas pelo parque e nos surpreendíamos a cada parada que explicava a formação daquelas lagoas: toda a água é proveniente do degelo das Cordilheira dos Andes e como ela escoa por vias subterrâneas, carrega muitos minerais, que deixam o deserto mais acinzentado do que branco. Isto, no contexto de um céu azul celeste, com o rosa dos flamingos e o branco de outros pássaros, nos fez n'algum momento sentar e contemplar, por muito tempo.

O frio já não incomodava mais e também já era hora de partir: seguimos com o grupo para a comunidade de Toconao, que embora já havíamos ido, o guia nos dissera que faria outros pontos de parada. Já na pracinha do povoado, entramos numa igrejinha linda, acolhedora, que ainda guarda ruínas da construção original, de 1744. 

Dali, demos uma volta para conhecermos os trabalhos das artesãs locais e, aos poucos, começarmos o rito de despedida daquela viagem incrível, com muita conexão com a natureza e o espírito do tempo, de tantas épocas distintas.

Quando voltamos à São Pedro o relógio já passara das 13h e Amanda e eu nem pestanejamos outra solução para o almoço, que não as maravilhosas empanadas do Café Esquina, já que o transfer para as Termas sairia as 14 horas - para nossa surpresa o passeio só tinha nós duas e, segundo o motorista, "não é comum ir às Termas à tarde. Lá faz muito frio, quando sai da água. Melhor ir de manhã".

Amanda e eu já estávamos de biquíni e achei, ingenuamente, que, chegando, só me bastaria tirar os casacos, térmica, cachecol, gorro, luva para "tomar um sol": fria ilusão - a coisa é tão séria de "não ir à tarde", que o ingresso às termas é o dobro do valor, se você vai de manhã; ou seja, passar frio é uma espécia de promoção (risos).

Mais uma vez, não tínhamos o que fazer, senão ir: e que ida! Que lugar maravilhoso! 

A estrada em si vale a pena pela paisagem e pelo frescor do vento e do cheiro tão diferente de qualquer outro clima ou ambiente natural.

Meu coração já palpitava, sentindo que estava acabando.

Os 800 metros de trilha até chegar às piscinas são de um verde com bege harmônicos e, lá debaixo, ao olhar para cima, me dei conta, de novo: "Estou num oásis no meio do deserto!".

Depois de lermos várias informações distintas sobre as piscinas, Amanda e eu optamos por entrar na mais quente e ficar nela, sem trocarmos uma e outra, para não corrermos o risco de desistir na primeira rajada de vento - e entrar não foi difícil: em segundos tirei os quilos de roupa roupa e pulei - relaxante e mágica a experiência.

Talvez duas horas tenham se passado, quando decidimos sair. Eu fui primeiro, a toalha já estava bem rente à borda das pedras que nos servem de escada: inacreditável e indescritível o frio! Nada comparado ao tour astronômico, ou à espera do amanhecer dos Flamingos. Eu não sentia nada, apenas meus ossos se contorcerem. A dor do gelo do frio era tamanha, que quando a Amanda saiu, mal podia mexer os braços para pegar a mochila e o tênis dela. E ainda tínhamos a máquina. E a minha mochila. 

Trêmula, com meus lábios roxos e, parada, sem conseguir me mover, só consegui dizer: "corre, vai para o banheiro!". Mas a Amanda só ria, de dor e nervoso. A gente não conseguia se mexer. Ficamos, as duas, curvas, quase em posição fetal, tremendo, querendo rir e chorar. 

Não sei como, muito menos da onde, me veio uma força, transformei a energia em calor, dei um passo para frente, e outro. Peguei a minha mochila. A dela. A máquina. Meu tênis. Faltava o dela. E eu só consegui dizer, tremendo, "vem, vamos".

Dali para frente deu branco.

Só me lembro de, já no vestiário, eu pular e gritar "puta-que-pariu-que-frio-da-porra-vou-morrer-relaxa-o-caral**".

Pânico. De-ses-pe-ra-do-ra a sensação. Quando enfim me vesti e me sentei para calçar o tênis, eu só conseguia pensar: "meia, eu te amo! Você é a melhor invenção de todos os tempos!". Por uns cinco minutos, sentada, em silêncio, mesmo com o cabelo molhado, eu finalmente pude sentir o impacto das águas termais no meu corpo e relaxar, com os pés, o corpo e o coração quentes.

Ao sairmos e, enquanto subíamos a trilha de volta, eu só conseguia agradecer ao universo por ter construído aquilo tudo e por nos meus extremos me lembrar dos meus limites e, sobretudo, da coragem em superá-los: toda dor vale a pena!

De volta a rua Caracoles, no fim do dia, admiramos mais um por do sol. Brindamos com um clássico Carmenere e voltamos à pousada para esperar a van que nos levaria de volta à Calama.

Apesar da estrada me parecer conhecida, era eu quem precisava me reconhecer depois de tantas novas experiências e novas descobertas sobre mim mesma e minha relação com este mundo, vasto mundo.




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*Não adesão à nova regra gramatical.