sexta-feira, 24 de abril de 2009

O que era já pode não ser mais

Referência [(...)3 Que é utilizado como referência. Sistema rígido em relação ao qual podem ser especificadas as coordenadas espaciais e temporais dos eventos físicos; sistema de referência].
Michaelis

Hoje faz duas semanas que comecei a trabalhar em um escritório diferente do qual eu estava desde Janeiro. O trabalho em si é mais ou menos o mesmo - e "mais ou menos" porque o atual é mais dinâmico e aberto, existe todo um entra-e-sai de pessoas que parece que te faz produzir menos e isso é diferente do que eu vivia. Há uma ilusória percepção de que perdermos o foco mais facilmente, mas eu acho que não, porque o movimento traz inspiração: escuto mais sobre processos e observo mais as pessoas. Se existe uma desvantagem, ela se revela na hora do almoço: comida péssima!

Mas como tudo na vida tem dois lados - ao menos - há um positivo nisso: me contento com pouco, tenho sido menos exigente e quando acho uma torrada Visconti no supermercado ou me deparo com um macarrão sem pimenta já fico feliz. Talvez aqueles que disseram um dia que felicidade não é complexa, está no caminho que se percorre e afins, passaram por situações e experiências como a minha atual e viram que dá para ser feliz com "muito pouco".

Aliás, "ser feliz" é muito forte e é preciso ter pessoas queridas neste cenário, então, para não parecer exagero, diria que consigo viver em um "bem-estar" alcançado mesmo que com menos opções.

Outro ponto positivo neste aparente contexto desconexo é participar de um dia-a-dia tipicamente masculino. Adentro a porta do restaurante da obra, que se empesteia com um cheiro forte de algo como uma pimenta amarga, num bafo de cozinha não industrial em meio a respirações e refrigeradores insuficientes. Um natural e não bem-vindo ar quente.

As mesas estão dispostas na horizontal e em cada fileira deve caber umas 15 pessoas. Sal, tempero, azeite e vinagre as compõe. Todos os homens, todos, olham fixamente como se fôssemos - eu e outras duas expatriadas que me fazem companhia - de algum lugar que não do Brasil: ser Brasileira seria comum demais e não nos daria toda a subjeção destes olhares. Enquanto espero a tradicional "fila do bandeijão" andar, continuo a observar que grande parte dos homens mantêm o olhar, de boca aberta, no levantar dos talheres em direção à boca: é no mínimo estranho, mas já não me incomodo e me concentro em tentar entender o comportamento das meninas líbias que não se sentam com homens, quaisquer que sejam eles e ficam de pé, por bons minutos, até que alguém se levante, em uma falsa pró-atividade voluntária.

Me convenço de que é incrível viver tudo isso ao mesmo tempo e pensar que, Inshallah, em uma semana, voltarei a ver o ar transparente, sem ser caramelo-creme, carros de variadas cores e não brancos em sua maioria, lixeiras pelas ruas, ventos que não trazem areia, bebida alcóolica e carne de porco, mulheres semi-nuas a namorar pelas ruas, corrida em parques e diálogos naturais entre pessoas do sexo oposto.

Ah, parques! Correr respirando um ar que, mesmo impuro, não revela cheiro de areia quando a gente passa, não arranha os olhos e nem resseca a pele. Resta saber como vou reagir ao rever o já visto sob novas perspectivas.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Capítulo IV - O final não é o término


"Sou e não sou naquilo que estou sendo" Álvaro de Campos

O líbio não foi e não será. Ele é. E Álvaro de Campos não sabia disso, mas é um exemplo de que por mais deslocados que possamos ser deles, ou pelo menos falo por mim, deve haver algumas questões que se cruzam. Todavia, o ponto não é saber no que nos parecemos, somente. Quero entendê-los como são e, no resumo superficial do aprendizado, diria que, sendo muçulmano, orientado por um direcionamento masculino e isolado, o líbio tem um perfil bem diferente do que qualquer outro do qual já tenha lido sobre ou ouvido falar. E essa composição de fatores o faz ter uma mentalidade, um modo de pensar, peculiar e dividido em perspectivas culturais:

Sendo o amanhã pertencente a Alá, o líbio vive no encontro do medo com a supertição, sem planos, focado no dia-a-dia, tornando-se aos nossos olhos passivos e não comprometidos, por outro lado, encaram, por exemplo a morte e a doença, de modo mais leve e mais aceitável, porque não se prepararam para acreditar em um futuro e em condições de alegria e paz a todo tempo: ser surpreendido é entender que foi feita a vontade de Deus.

Aí está a primeira divergência conosco, que em maioria vivemos a olhar para trás e para frente e pouco absorvemos do presente. Assim, eles são e nós estamos. A abordagem deles em tudo o que fazem exige ser pessoal e emocional. Hoje entendo bem as conversas, para mim até então aleatórias, de quando fui visitar escolas de inglês. Um Diretor mostrou fotos e o outro falava da mobília da casa. Os líbios são seguidores, não necessariamente líderes, ou seja, não tomam a iniciativa agressiva para que algo aconteça após a reunião. O foco deles é aquele momento e isso não os faz tornar alguém, eles já são. Sob esta ótica e, de novo ao contrário do que somos feitos, os líbios agem em consideração ao emocional. Pergunte da família, da cultura, revele-o importante para você e ele será pragmático nas atividades. O desafio é mudá-lo de função, por exemplo, sem envolvê-lo pessoalmente e esperarmos que ele seja flexível e aja de acordo com o ambiente: não, ele não se torna alguém dependendo do lugar, ele é em todas as maneiras a mesma pessoa.

Essa redenção, que também parece um pouco de resistência ou de dificuldade em compreender-nos, é da natureza deles. Eles são educados a não causarem problemas porque são o reflexo da família, que é a base estrutural e a cara social deles. Nesta natureza, o líbio aceita as condições existentes, não questiona e acata determinados direcionamentos, o que não significa que se sentirão parte deles: aí você vai pensar que eles estão sob seu controle, quando na verdade, eles só agem de acordo com o que aprenderam: a não provocar.

Em resumo,a mentalidade de um líbio se soma por seu entendimento de tempo (passado, presente e futuro); por seu conceito de atividade (aceitar, o que não significa fazer e não questionar) e por sua natureza de se render, em prol da harmonia, para não comprometer a imagem de sua família dentro da sociedade e, por fim, mas não mais importante, por todo e qualquer tipo de relacionamento.

De novo e, ao contrário de nós, eles não agem individualmente, porque pensam em coletivo. Enquanto somos individualistas no sentido de fazermos por nós e para nós mesmos, o líbio, como reflexo da família e nessa quase anulação de indentidade individual, tem como prioridade os parentes e os amigos, ambos embasados pela diretriz religiosa. No frigir dos ovos, o trabalho é secundário e não importante sob o ponto de vista daquilo que os motiva e orienta: relacionamento pessoal e conforto coletivo.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Capítulo III - Nada de frágil neste sexo

Mulher [ (lat muliere) 1 Feminino de homem. 2 Esposa. 3 Pessoa adulta do sexo feminino. M. de casa: a que administra bem uma casa e cuida com economia e previdência da vida e educação da sua família (...)].
Michaelis
Desde o momento em que nasce, a mulher é educada a não ser mulher como um símbolo sexual. Ela aprende a andar na rua, quando sozinha, como se estivesse sempre com pressa, atrasadíssima para um compromisso: olhando para baixo e andando rápido.

Olhar para o chão significa não fazer contato com os homens, principalmente visual. Olhar nos olhos denota uma atratividade não recomendada. Portanto, o ato de se cobrir (leia "usar véu ou burca") é não parecer sensualmente atrativa. Ainda, as mulheres não se socializam com homens, nem em ambiente particular. Aqui, as casas são construídas de modo que há sala "para eles" e " para elas". Neste momento, exibem-se umas às outras, quando a minha leitura é a de que os comerciais de shampoo, condicionador e afins fazem sentido: total sentido.

Junto com o processo de abertura do país veio a aceitação da flexibilidade daquilo que seria um código de vestimenta das mulheres. Visivelmente nas ruas há mais locais sem burca/véu e não há imposição legal ou religiosa para este fim. Cabe à família decidir como elas devem se comportar diante da sociedade e, depois, o marido direciona sobre a forma de envolvimento social.

Um exemplo curioso disto que parece ser um pseudo-relacionamento é o fato de que um supermercado novo em Tripoli é o grande acontecimento da cidade, por, dentre outros fatores, apresentar uma estrutura inovadora para os padrões e ousadas para outras prateleiras que guardam produtos mais comuns e simples.
O supermercado se tornou um ponto que converge o encontro de jovens rapazes e solteiros que se dispõem a “paquerar” as damas que vão às compras. Uma vez observado isso, o estabelecimento decidiu criar dias específicos para determinados públicos. Se não me engano, às Sextas-Feiras e aos Domingos só é permitida a entrada de mulheres e/ou homens com família (mulher + filhos); do contrário, não são autorizados a entrar, nem que consumam milhares de libians dinares em compras.

Eu não consegui saber ou interpretar o que significa o casamento para um líbio, mas perguntei sobre o divórcio. Embora o Alcorão não o proíba, ele não sugere ou apóia. Assim, o divórcio é permitido e de um modo geral as mulheres são protegidas pela lei, já que a prioridade delas, enquanto seres do sexo feminino, é cuidar da casa e dos filhos: trabalhar é um privilégio secundário.
Quanto à poligamia, ao fato do homem poder ter até quatro esposas, isso é válido, desde que ele as trate de modo igualitário e justo e que a primeira esposa concorde com o fato dele ter outras mais.
Na Líbia, poucos são os homens que têm duas mulheres. O país ainda está blindado contra a crise, mas ser justo com quatro ao mesmo tempo tem lá sua resistência. As gerações quer praticavam poligamia quase estagnaram na década de 60-70 devido a mudança econômica à época, então, ter mais de uma mulher ficou fora de moda.

Sempre que posso, gosto de ir ao supermercado badalado para observar e me sentir observada - principalmente pelas mulheres. Algumas me olham com desgosto, indiferença, preconceito, arredio. Outras, com admiração, sorriso, leveza e interesse.

Essa semana comecei um trabalho em um ambiente mais diverso e fui apresentada, ao mesmo tempo, a sete líbias, mais ou menos da minha idade. Diria que as perguntas que passam pela nossa cabeça passam pela delas também, mas acho que aprenderam a ser discreta: já eu não consigo! E sendo em geral a imagem que elas têm da mulher ocidental como similar àquelas vendidas em filmes e revistas, o que nos deixa vulgar de um modo mais abrangente, até as acho simpáticas comigo. Tenho visto que pouco têm de frágil e que de certo modo nascem sabendo que precisarão ser fortes, independentemente do horizonte para o qual têm permissão para olhar.
Façam um teste: tentem sair às ruas e cruzar com várias pessoas andando do modo descrito. E, principalmente, tente não olhar nos olhos das pessoas. Para mim é no mínimo difícil e, quando consigo, desconfortável.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Capítulo II - A origem da base social

Crença (lat credentia) 1 Ato ou efeito de crer. 2 Fé religiosa. 3 Opiniões que se adotam com fé e convicção. 4 Crédito diplomático.
Michaelis

O Islamismo é a crença sobre aquilo que está escrito e este Livro Escrito (Alcorão) está no céu (entenda pelo conceito de “paraíso”). Assim, tudo está pré-destinado e por isso os islâmicos - neste caso os líbios - não preparam o próprio futuro. Não existe planejamento. De certa forma, esta passividade os abstém de tomarem para si a responsabilidade de qualquer coisa, o que reflete em um claro conflito no direcionamento profissional das empresas ocidentais e, portanto, das pessoas que as compõe.

Em suas práticas de devoção a Deus, os muçulmanos convergem-se perante a Ele, em direção à Meca, cinco vezes ao dia. É uma forma de se mostrarem pequenos e humildes a Alá: deve-se reconhecer o poder Dele sobre os humanos.

As preces acontecem antes do primeiro raio de sol estar visível aos olhos nu e aí se ajoelha duas vezes. O segundo acontece ao meio-dia, quatro vezes. Pelo fim da tarde, quatro vezes. Quando o sol se põe, mas ainda com luz, três vezes. E, por último, quando não há nenhum feixe de luz do sol, quatro vezes.
Ao contrário do que se possa pensar, não há horários exatos para tais preces. A cada prece, o muçulmano prepara-se mental e fisicamente. Não se faz pedido. Apenas agradece e reconhece a devoção do Ser maior: Hoje os estrangeiros reclamam consideravelmente sobre as pausas que os locais fazem durante o dia para rezar. Tudo bem que alguns tiram proveito disso para se ausentarem por mais tempo, mas poucos são os estrangeiros que pensam que pela tradição, costume e religião, os líbios trabalhavam das 7:30 às 14:30, quando então, rezar nunca foi um obstáculo quanto a horas trabalhadas. Nós chegamos e impusemos o nosso horário – e eles é quem estão errados?.

Ainda, o interessante é que tão importante quanto o Sol, se faz a Lua e, por isso, o calendário islâmico é lunar. A Lua é o símbolo do Islamismo e ao seu começo de formação se faz o começo dos meses.
O Ramadan, nosso Setembro, é o mês mais importante para eles. É o mês que data a primeira vez que Mohamed (Moisés) recebeu a revelação de Deus. Era uma sexta-feira e, por isso, é o "Dia Santo", como deveria ser os nossos Domingos: Para mim, o interessante de se descansar em uma sexta-feira e se trabalhar no Sábado e Domingo é pensar que o mundo está sempre aberto para negócios ou qualquer tipo de comunicação.

Enfim, dentre tudo aquilo que forma a base de um muçulmano há cinco pilares que são igualmente importantes e que constróem a vida das pessoas que chamamos de “do mundo árabe”: Para eles, o árabe é a língua mais importante do mundo, porque Alá a escolheu para a escrita do Alcorão, em revelação a Moisés.

Declaração: Moisés é o mensageiro de Deus, que é Alá;
Preces: De acordo com o movimento do Sol;
Caridade: Todos são obrigados a ajudar os pobres e parte do dinheiro vai para Mesquitas como Centros Comunitários que redistribuem o dinheiro arrecadado caso o indivíduo não tenha escolhido uma pessoa, voluntariamente. Isto acontece nos 10 dias que antecedem o fim do Ramadan e a quantia é definida pelo Governo (Hoje é de 10LYD por pessoa – 16 reais);
Peregrinação à Meca: uma vez em vida o muçulmano deve peregrinar à Meca em certeza de purificar-se diante ao que é Supremo;
Jejum: Acontece durante o Ramadan, todos os dias, entre o nascer e o pôr do Sol. Neste intervalo de horário, não se pode ingerir absolutamente nada, nem água. A ação de jejuar tem perdido seu significado nos últimos cinco anos. O objetivo era o sacrifício de focar no espírito das pessoas, abstendo-se de tudo aquilo que dê prazer corporal. Hoje, o Ramadan é uma grande festividade e é o mês que mais dá lucro para os comerciantes. O que não é consumido durante a luz do dia é consumido durante a noite e a madrugada. Por outro lado, as pessoas ficam cansadas, dormem pouco e cumprem diversas obrigações sociais: Acho que é bem similar ao nosso intervalo de Natal e Ano Novo. Muita comida e pouca celebração espiritual sobre aquilo que de fato deveríamos focar.
*Não adesão à nova regra gramatical.