terça-feira, 15 de agosto de 2017

Um forte de ruínas no Deserto | parte IV

"O caminho é o que importa, não o seu fim. Se viajar depressa demais, vai perder aquilo que o fez viajar." (Louis L'Amour)

Andamos pela rua Caracoles, entramos em ruelas que ainda não tínhamos ido, voltamos às lojas de câmbio, considerando trocar mais dólares por pesos chilenos, avaliando uma possibilidade de fazer um passeio de balão, se esgotássemos todas as rotas alternativas nos próximos dias.
Já era quase início da tarde quando nos lembramos de termos visto uma casinha com a placa de "central de informação ao turista" na praça principal - e única. Fomos até lá e perguntamos o que poderíamos fazer, além daquilo que tínhamos feito.

O atendente reforçou "todo lugar cerrado por la nieve", falou da ida de bike ao Vale de la Muerte e, quando estava prestes a desistir de trazer algo novo para nós, perguntou: "O Pukará de Quitor, vocês também já conheceram?".
- Opa! Este não! - olhei para a Amanda.
Ela pediu para que ele nos mostrasse no mapa: "vai que" havíamos entendido errado o portunhol dele.

De fato, não havíamos ido, mas nos animamos ainda mais quando ele disse que deveríamos ir a pé. Segundo ele, e mostrando no mapa também desproporcional, "3km do centro de São Pedro até lá".

Embora nossas pernas ainda doíam da pedalada do dia anterior, havíamos dormido bem, o café da manhã fora novamente mega reforçado. 
Na saída da Caracoles, olhamos para a direita e passei a seguir às coordenadas da Amanda: sou péssima para mapas! e ela disse com muita segurança: "depois daquela direita, é só seguir reto".
E foi. Mas por um bom tempo sentimos dúvidas sobre o caminho pelo qual caminhávamos, já que não havia placa e todas as referências do mapa desproporcional mais nos irritava ou confundia do que ajudava.

Quando enfim chegamos à entrada do Pukará e pagamos alguns pesos, que não me lembro quanto, mas acho que fora o passeio mais barato até então, não parecia assim ser grandes coisas. Ao longo da caminhada pelo Forte, descobrimos que era uma construção do século XII, realizada para proteger o povo atacamenho de invasores de outros lugares da América do Sul, por ser um lugar estratégico em termos comerciais, principalmente por estar sobre o Rio Grande e, portanto, por gerar uma riqueza à época, via cultivo, incomparável às demais da região.

Aquele dia fazia sol e calor e quando terminamos de andar pelas ruínas, achando tudo meio sem graça frente tanta beleza já vista, sentamos e pudemos avistar São Pedro bem de longe. Eu mesma só pensava sobre tudo o que tinha lido e as guerras que por ali aconteceram, pouco mais de 700 anos antes.

Ao pegar o celular para tirar uma foto, vi que estava sem bateria. Pedi o da Amanda emprestado - sem bateria. E isso acontecera várias vezes com o meu - desligar, do nada - com o dela havia sido a primeira vez e naquele momento apenas lamentamos não podermos tirar foto, já que a máquina, mais pesada, havíamos deixado no hotel, sabendo que caminharíamos com tanta coisa no lombo.

No meio da tarde, na descida para sairmos do Pukará e pegarmos a estrada para a cidade, vimos um pessoal no alto de uma outra montanha. Sem placas ou orientação no mapa do próprio Forte, fomos andando no sentido daquela gente e achamos uma bifurcação. Começamos a subir, sem saber para onde. Seguíamos um fluxo de percepção, não de pessoas.

Sem relógio ou celular, não fazíamos ideia do tempo. Num determinado momento do caminho, avisto um casal descendo. A mulher um pouco mais à frente do homem. A mulher passou por mim. Quando ela passou pela Amanda e eu passei pelo homem, tcharam!, nos conhecíamos de São Paulo: era um casal que trabalhara na mesma consultoria que a gente.

Ufa!

Papo vai, papo vem, eles nos disseram "Subam! Vale muito a pena! A vista é demais (...)!".
Depois de falarem um pouco daquele percurso, trocamos informações sobre o que haviam feito e o que ainda fariam. Falamos do "cerrado por la nieve" - uma pena! Dentre as trocas, eles ainda não tinham ido ao Tour Astronômico e falamos bastante do frio - depois pensamos que os assustamos demais, mas melhor passarem calor (e duvido que tenham passado), do que frio - e eles nos falaram dos Flamingos - que ninguém nos tinha dito: nem os atendentes das agências, nem o gente boa da casinha de informação ao turista (mas se ele não nos avisou que dentro do Pukará tinha uma trilha para algo mais significativo, quiçá sobre passeios fora do script!).

Definitivamente empolgadas para então subir todo aquele caminho, que na verdade não acabava nunca, eu mesma pensei em desistir várias vezes:
1) Não cruzávamos com ninguém por horas - ou talvez minutos e estar sem relógio era só afobação indevida;
2) Nossa água estava acabando;
3) Precisava muito fazer xixi;
4) Não tínhamos comida;
5) Sabíamos que seria bonito, mas tínhamos dúvida se a beleza valeria a pena;
6) Queríamos desistir, mas depois pensávamos que poderíamos nos arrepender, ao chegar em São Pedro, dar um Google, e ver que era a vista mais bonita da vida!;
7) Tínhamos medo de anoitecer e ficarmos sem lanterna para voltar;
8) Mal estávamos próximas de chegar ao topo e já pensávamos que depois de subir, tínhamos que descer e caminhar os 3km até a cidade;
9) O fôlego parecia ser pouco, para tanto!

Enfim. Mar de conflito mental. Mas enquanto tínhamos dúvida, caminhávamos.

Quando eu realmente pensei em desistir, porque já desacreditava que havia qualquer fim, avistamos um garoto, descendo:
- São quatro horas da tarde. Mas em cinco minutos vocês chegam!

Pensei: "Cinco minutos? Bom, ou é cinco minutos - e sei lá como vou saber se já se passaram cinco minutos - ou vou embora!".

A Amanda disse, rindo: "Agora eu vou até o fim. Se quiser me espera aí".

Finalmente, chegamos!

Uma pena que não tenhamos registro dessa vista.

Eu ainda só pensava em controlar o xixi e a sede e a fome e o stress. E consegui desfrutar, somente depois que li numa  placa que ali, no alto de todos os desertos que já havíamos visitado - de terra, sal, neve e tudo isso misturado - havia uma cruz em homenagem a todos aqueles que foram mortos e torturados em barbáries, cujo genocídio indígena provocado por espanhóis só fora reconhecido em 1984, quando fizeram do Pukará um Monumento Nacional de valorização à vida e de reconhecimento público da história que os envergonha, mas que deve ser lembrada, para não ser repetida.

Alguns minutos depois - ou muitos minutos depois - pouco me importavam todos aqueles meus sentimentos. Me deixei levar pela emoção e energia daquela cruz, daquela história, daquelas ruínas que lá de cima pareciam amontados de pedras desorganizados, mas que guardavam vidas, embora agora todas mortas.

Não me lembro que hora chegamos, ou o que fizemos. Não registrei o tempo. Não me lembro se cansara demais. Se voltamos bem, sem medo de nos perder. Mas me lembro que adentramos São Pedro antes do anoitecer e que, definitivamente, guardava para o universo que o próximo, e último dia, fosse como todos os outros: um exímio caminhar, enquanto caminhamos.


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*Não adesão à nova regra gramatical.