terça-feira, 1 de agosto de 2017

Dos desertos do Atacama | Part II

"Sou feito das ruínas do inacabado e é uma paisagem de desistências que definiria meu ser". Fernando Pessoa

Parecia que o frio da noite anterior não havia passado. O tour astronômico vale muito a pena, mas não conseguimos ficar as duas horas completas: às 21 horas já fazia -6oC e apesar de estarmos com roupas apropriadas, vestidas com nossas térmicas, luvas, gorros e meias, o vento era cruel e parecia nos cortar, misturado com o ardor do tempo seco. 

Ao longo dos quase 60 minutos em que aguentamos de pé, observamos a maravilha das constelações e as histórias narradas sob a perspectiva de cientistas, que sabem também usar de poesia e sensibilidade para desenhar, junto com a gente, através de lasers apontados no céu, o conjunto bilenar de estrelas. 

Logo depois que vimos os anéis de saturno, aparentemente tão próximos de nós, cedemos e buscamos abrigo. Aos poucos os demais turistas foram se rendendo ao frio e, quando nos reunimos novamente, fomos acalentados com um delicioso chocolate quente, que mais bem-vindo pelo sabor, foi para aquecer as mãos quase congeladas. 

Naquela manhã, então, acordamos bem cedo para conhecer o Vale do Arco-íris, que fica na Cordilheira Domeyko, formada há 150 milhões de anos, e que divide a paisagem com o Deserto de Sal e a Cordilheira dos Andes - visual da estrada totalmente diferente dos outros dias: montanhas avermelhadas, polvilhadas levemente pelo branco rústico e delicado de neve com sal.

Apesar de ainda estarmos sob o efeito do frio como se tivéssemos dormido no freezer, esperando o vento gelado perder força pelo sol que acordava, a caminhada pelo Vale é bastante agradável, e embora a nossa guia trouxesse explicações muito técnico-científicas para o meu agrado, elas me despertaram para uma admiração quanto à paixão destes profissionais naquilo que fazem, cada qual na sua forma de contar a história do universo!

A Lorena, essa nossa guia, às vezes, andando a esmo, se abaixava, recolhia uma pedra e dizia "olha que maravilha essa mutação", e explicava em detalhes as variadas cores num pequeno pedaço milenar do mundo, ali, na palma da mão. 

Naquele Vale, conheci a planta rica-rica, famosa por ser curativa quando utilizada como chá e por dar um sabor especial ao famoso drink pisco-sour. Em meio a vento, ventania e um sol que tentava esquentar, discreto no céu azul sem nuvens, andamos por rochas plutônicas e vulcânicas, sendo que a mais "nova" tinha mais de 5 milhões de anos!

Numa bifurcação de paredões coloridos, Lorena sugeriu que sentássemos e fizéssemos um minuto de silêncio, em que cada um escolhesse pelo que calar. Todos consentiram. Foi a escuta mais profunda do silêncio que tive em toda a minha vida; rezei o Pai Nosso, agradeci e contemplei por estar num lugar que se constrói e se reconstrói a cada partícula de vento. Ao sinal sonoro, suave, da Lorena, para nos despertar daquele momento, nos demos conta de que mais de dois minutos haviam se passado e que poderíamos nos calar por muito mais tempo, num verdadeiro exercício de pertencer.

Dali, fomos conhecer alguns Petroglifos, quando logo depois da segunda arte rupestre identificada - lhamas aparentemente "correndo" - um rapaz que estava no nosso grupo urrou de dor: havia torcido o joelho na passagem de uma pedra para outra. 

Prontamente as pessoas se mobilizaram para chamar o motorista da van que nos aguardava num estacionamento distante, outras pegaram neve à beira da montanha para tentar aliviar o inchaço imediato, enquanto outras pessoas davam-lhe apoio para andar, já que não conseguia mais pisar no chão. 

Daquele grito em diante, as pinturas de 2.000 a.C e, mesmo as mais novas, de 500 a.C, se tornaram pouco importantes e só gostaríamos de voltar à São Pedro de Atacama, para que o garoto, que viajava sozinho, pudesse ser atendido, mesmo que com um amparo pontual da Lorena.

A vantagem deste imprevisto é que chegamos ao centro da cidade com o tempo muito curto para almoçarmos e, então, pudemos experimentar da incrível "super empanada" do Café Esquina, um restaurante super pequeno na virada da rua Caracoles com a Domingo Atienza: certamente será difícil encontrar uma dessas - com a massa tão leve e fresca e com o recheio tão saboroso - nos lados de cá.

Renovadas do susto e felicíssimas pela super-empanada, seguimos para o Vale de la Luna; que até aquele dia passara a ser o mais surpreendente: a trilha cansativa, com momentos de caminhada por areia-fofa, que dificultavam as passadas, somado ao fato de estarmos não só no deserto mais alto, como o mais seco do mundo, me fazia perder o fôlego e quase o prumo; até que chegamos à recompensadora vista. Sentei. Deslumbrante! A paisagem em si é uma mistura de dunas de areia, com rochas e ruínas e caminhos que há milhões de anos foram rios e riachos. Sal e neve coabitando, e o por do sol ensaiando para acontecer naquele mar de imensidão, em que nunca esteve pronto, nem nunca estará, reconstruindo-se a cada evento natural - assim como nós!



Nenhum comentário:

*Não adesão à nova regra gramatical.